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domingo, 28 de junho de 2015

Crise no Futebol Brasileiro

 O país do futebol O século XX foi, no Brasil, o século do futebol. Desde sua introdução no país, o antigo “esporte bretão” passou por um verdadeiro processo de incorporação cultural até se constituir no que os brasileiros chamam de “a paixão nacional”, como se com isso quisessem afirmar que o futebol é quase uma propriedade nossa, que fomos talhados para o futebol, que não só o nosso futebol é o melhor do mundo, como o país é o lugar do mundo onde mais se ama e se entende o futebol. Tudo isso está bem sintetizado no epíteto “Brasil, país do futebol”, já solidificado não só no imaginário nacional, mas também fora do país, principalmente em decorrência da supremacia brasileira em Copas do Mundo, após as quatro conquistas (1958/1962/ 1970/1994). Mais do que uma paixão, o futebol foi um elemento primordial na história recente do país, em sua transição de uma sociedade rural para uma moderna sociedade urbana e industrial. Como vários estudiosos destacaram, o futebol no Brasil foi um poderoso mecanismo de integração social, de solidificação de uma identidade nacional, além de revelar certas características imaginadas da “alma brasileira” (LEVER; DAMATTA; LEITE LOPES; HELAL; 1983, 1982, 1994, 1997). Foi através do futebol que os brasileiros puderam integrar “Estado nacional e sociedade e sentir a confiança na nossa capacidade como povo que podia vencer como país moderno, que podia, também, cantar com orgulho seu hino e perder-se emocionado dentro do campo verde da bandeira nacional.” (DAMATTA, 1994, p. 17). No entanto, próximo do final do século XX, particularmente a partir de fins da década de 70, se começa a falar de uma “crise” no futebol brasileiro. Essa crise manifesta-se, por exemplo, na queda progressiva do número de espectadores das partidas de futebol, no aumento da violência nos estádios (principalmente entre as chamadas “torcidas organizadas”), na evasão de jogadores para o exterior e no crescente endividamento financeiro dos clubes. Inicialmente sentida e dramatizada pela imprensa esportiva, a crise do futebol passou a ser objeto de alguns estudos acadêmicos que procuraram detectar quais os problemas que afligiam o futebol brasileiro e apontar algumas alternativas (HELAL; MURAD; TOLEDO; 1994 e 1997, 1996, 1996). É preciso notar que, mesmo após a vitória na Copa do Mundo de 1994, a despeito de uma breve atenuação, esses problemas persistiram, levando a Confederação ! #$$# ++ /4 0 Brasileira de Futebol (CBF) a organizar, em agosto de 1996, um seminário para discutir o assunto (HELAL, 1997, p. 18). Assim, a crise ressurge com força no final dos anos 90 e, em 2000, no último ano do século, paradigmaticamente, pareceu atingir seu ponto mais dramático, com escândalos envolvendo altos dirigentes e acusações de corrupção e fraudes que atingiram o ex-técnico da seleção brasileira, Wanderley Luxemburgo. Esses fatos culminaram na instauração de duas CPIs na Câmara e no Senado Federal. Paralelamente, a CBF solicitou à Fundação Getúlio Vargas um “Plano de Modernização do Futebol Brasileiro”, cujo diagnóstico inicial já foi apresentado à imprensa em dezembro de 2000, apontando os seguintes problemas: a) falta de ética profissional; b) falta de credibilidade; c) falta de qualificação para dirigentes e árbitros; d) baixos salários para a maioria dos jogadores e salários elevados para poucos; e) falta de liderança por parte da CBF; f) calendários confusos. Em meio a isso, o campeonato brasileiro de 2000, elaborado desta vez pelos próprios clubes, foi considerado um fracasso. Mais de cem times, divididos em três módulos, disputaram a competição que teve uma média de público baixíssima (menos de 11 mil pagantes por partida) e um desfecho trágico na partida final, quando o alambrado do Estádio São Januário se rompeu, causando um acidente que deixou um saldo de 168 pessoas feridas. Campeonatos organizados livremente pelos clubes, sem a interferência da CBF, eram apontados na mídia como uma das soluções para a crise. Isto não ocorreu e um sentimento de descrença tomou conta dos articulistas dos maiores jornais do país. Estamos, assim, diante de um cenário de descrédito em relação às instituições que controlam o futebol, cujo resultado reflete-se no distanciamento dos torcedores. Um aparente desinteresse dos brasileiros em relação ao futebol se faz sentir e incomoda por ser um fenômeno surpreendentemente novo. A tal ponto que alguns analistas começam, informalmente, a questionar a própria importância do futebol no Brasil. Recentemente, um colega antropólogo, ao ser perguntado por um repórter do O Globo (01/10/2000) sobre os impactos da derrota do futebol brasileiro nas Olimpíadas, respondeu diretamente: “Nenhum. O orgulho nacional não sofre mais com as derrotas. Há uma diversificação de interesses em outras modalidades de esporte e lazer, o futebol já não tem tanto peso”. E conclui: “a pátria calça chuteiras cada vez menores”, em alusão a uma famosa imagem brasileira - a pátria de chuteiras - cunhada pelo dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues para expressar a relação que sempre concebemos entre identidade nacional brasileira e seleção de futebol1 . À parte um certo radicalismo, a frase talvez expresse um sentimento ou um “clima” que começa a se divisar nesse fim de século. Se compararmos a situação atual com a forte carga emocional expressa na derrota da Copa de 50, por exemplo, 6 5 7 ( ( 1 ou no tricampeonato em 70, podemos mesmo especular sobre o fato de estarmos assistindo a um declínio do interesse pelo futebol. Hoje, ao contrário de décadas atrás, seria lícito perguntar, afinal, se o Brasil está deixando de ser o país do futebol. Caso analisemos esta questão do aspecto técnico e menos das representações do futebol no imaginário nacional, o ex-jogador e atual comentarista Tostão vem enfatizando, em suas colunas no Jornal do Brasil, que não jogamos mais o melhor futebol do mundo. A mesma idéia foi transmitida pelo ex-técnico da seleção brasileira, Wanderley Luxemburgo, falando das qualidades apresentadas pela seleção nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002. Os dois estariam dando a entender que o Brasil vem deixando de ser (como afirmávamos até um passado muito recente) a maior potência do futebol mundial. Poderíamos ver nessas declarações outros indícios de que os brasileiros começam a questionar a idéia de que o Brasil seja ainda o país do futebol. A questão em si, isto é, sua própria condição de possibilidade – uma vez que fazê-la, por exemplo, em 1970, seria absurdo – já nos permite vislumbrar que o nosso futebol vem passando por importantes mudanças, e que essas são percebidas pelos agentes do universo futebolístico como uma “crise”. O objetivo deste ensaio é justamente refletir sobre a chamada “crise” do futebol brasileiro e avaliar suas reais dimensões. Procuraremos articular o tema com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas, com a chamada globalização, ou melhor, com as transformações culturais decorrentes do processo de globalização. Certamente, uma reflexão desse tipo leva muito de especulação, já que estaremos analisando um processo em curso, não acabado. No entanto, cabe aqui um exercício que será ao mesmo tempo um balanço do papel do futebol na passagem de uma sociedade tradicional e rural para uma sociedade moderna e urbana (com todas suas contradições e conflitos), bem como um esboço do que poderá ser seu papel quando essa mesma sociedade adentrar a pós-modernidade. Em síntese, ao final de nosso ensaio pretendemos deixar aberta a seguinte provocação: se, no século XX, o futebol ocupou um papel preponderante na história e na formação da identidade cultural do Brasil: o mesmo ocorrerá no século XXI? Mas, antes, é preciso retroceder um pouco, para colocar em perspectiva o atual momento do futebol brasileiro. Se a situação presente é conceituada como uma “crise” é porque se o faz em comparação a algum outro momento (passado) em que essa crise não se colocava. Aqui acreditamos poder fazer um recorte mais ou menos arbitrário e contrapor à situação atual ao período que vai da década de 30 a 70: fase que poderíamos chamar de “anos dourados” do futebol brasileiro e que tem como pontos inicial e final a instauração do profissionalismo (1933) e a conquista do ! #$$# ++ /4 tri-campeonato mundial (1970). Nossa intenção é analisar separadamente esses dois períodos, procurando destacar o modo pelo qual o futebol brasileiro foi e vem sendo construído – e ajudando a construir uma idéia correspondente de sociedade – nesses dois momentos. Futebol e Nacionalismo no Brasil: o papel da imprensa O futebol foi introduzido no país num período em que se iniciavam importantes mudanças na sociedade brasileira. Saíamos de um regime monárquico, baseado na produção escravocrata para um sistema republicano, não-escravagista. Com isso, um tipo de sociedade basicamente rural e agrária iniciava um processo de urbanização e lenta industrialização. Nas primeiras décadas do século XX, o país assiste a um crescente processo de migração para as cidades, dando início à formação de um proletariado urbano. Trazido ao país por imigrantes ingleses, o futebol foi absorvido por setores da nova elite urbana, que não viam com bons olhos a participação das classes populares, principalmente negros e mestiços. As primeiras décadas são marcadas por um embate no interior desse novo “campo” de relações, no qual havia duas forças contrapostas: uma ciosa em manter o futebol restrito a essa elite educada e europeizada; outra, favorável à abertura e à expansão desse campo ao resto da sociedade. Objetivamente, tal confronto ganhou nome nos anos vindouros, opondo de um lado os defensores do amadorismo, e de outro, os do profissionalismo no futebol. Mas devemos observar que a lógica do amadorismo não pode ser completamente abstraída do ambiente ideológico e do contexto cultural em que estava absorvida. A defesa do amadorismo – explícita ou implicitamente – era a defesa de um futebol não-negro, fechado às classes populares, circunscrito às elites urbanas. O debate em torno do profissionalismo surge no final da década de 10, mas torna-se uma questão central, a partir de 1923, quando o Vasco da Gama sagrase campeão no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, um time composto em sua maioria por jogadores mulatos, negros e de classe social inferior conquistou um título. Desde 1915, alguns jogadores recebiam dinheiro de sócios ricos dos clubes e, em 1917, os clubes de Rio de Janeiro e São Paulo começaram a cobrar ingressos dos espectadores que assistiam as partidas. Isso fez com que esse período fosse conhecido como “profissionalismo marrom” ou “falso amadorismo”. No entanto, como até 1923 os times campeões foram aqueles cujos jogadores eram majoritariamente amadores, o problema do amadorismo marrom não incomodava tanto. A vitória de um time de jogadores remunerados, ao contrário, provocou forte reação dos defensores do amadorismo, que promoveram uma cisão no futebol do Rio de Janeiro, criando uma liga à parte, excluindo o Vasco. Posteriormente, o Vasco foi reintegrado e a liga 6 5 7 ( ( reunificada, mas o debate em torno do profissionalismo iria precisar de mais dez anos para ser solucionado. Com a profissionalização em 1933, o futebol iria finalmente se constituir num espaço onde os setores mais baixos da população podiam almejar um emprego que não necessitasse de longos períodos de aperfeiçoamento pessoal, anos de educação formal, funcionando, assim, em alguma medida como uma possibilidade de ascensão socioeconômica. Assim, as forças modernizantes conseguiram soltar as últimas amarras contra a ampla popularização do futebol no país. No entanto, não podemos saber se a adoção do profissionalismo isoladamente teria cumprido com sucesso essa tarefa. Isto porque, nesse mesmo período, houve todo um trabalho de difusão e de criação de um espaço naturalizado para o futebol no Brasil. Este foi um processo conscientemente executado por certos agentes do universo esportivo e político e teve como estratégia promover uma associação simbólica do futebol com contextos mais totalizantes da realidade social brasileira: o Estado-Nação e o povo. Portanto, mais do que uma questão restrita às mudanças na forma de organização (amadora ou profissional) do esporte e sua difusão, o que estava se constituindo, a partir dos anos 30, era uma equação simbólica - que haveria de ter amplos efeitos sociológicos - entre futebol e identidade nacional. Para entender esse processo, é preciso esboçar o contexto social e as mudanças que se passavam no Brasil de então. Os anos 30 marcam o fim da chamada República Velha e o início do Estado Novo, liderado pelo presidente Getúlio Vargas. Esse período caracterizou-se por forte centralização política e grande preocupação com o desenvolvimento nacional, com a idéia de integração e com a fortificação da presença do Estado no papel de promotor tanto do desenvolvimento econômico, quanto da integração nacional. Outro aspecto do período Vargas foi a atenção dada às questões trabalhistas. A constituição de 1934 assegurava uma série de garantias aos trabalhadores, como salário mínimo, regulamentação da carga horária, direito à organização sindical, previdência social, criação de uma instância jurídica especial para arbitrar os conflitos entre patrões e trabalhadores, etc. Três anos mais tarde, Vargas promulga uma nova constituição, influenciada, segundo alguns autores, no corporativismo de Mussolini e que expressava a preocupação da época: promover no país a acomodação harmônica dos diferentes grupos sociais, conquistando uma sonhada “unidade nacional” (DI TELLA apud OUTHWAIT E BOTTOMORE, 1993). Ao mesmo tempo, no campo intelectual, entre os cientistas sociais que se propunham a pensar e explicar a sociedade brasileira, a década de 30 reservava também uma nova forma de conceituar o Brasil. É importante notar que nesse mesmo contexto e, curiosamente, no mesmo ano em que se instaurava o profissionalismo no ! #$$# ++ /4 futebol, o sociólogo Gilberto Freyre lançava o livro Casa Grande & Senzala, obra que teria enorme influência na forma de representar, para si e para o mundo, a sociedade brasileira. De fato, a partir da década de 30, o impacto da obra de Freyre teve, como conseqüência, a gestação da noção de “democracia racial”, que se infiltrou com grande força nos modelos de explicação da identidade nacional (FREYRE; PIERSON; RODRIGUES; 1933, 1942, 1982). Nesta leitura, a miscigenação racial (empiricamente observada) seria o resultado de uma norma harmônica, não conflituosa (conceitualmente postulada), nas relações entre as raças formadoras do complexo populacional brasileiro. Antes de Freyre, a miscigenação era tida pelo discurso científico como o grande problema brasileiro. Na nova formulação, ela aparecia como um aspecto positivo e vantajoso da nossa sociedade. Vê-se que, de algum modo, as novas teorias sociológicas sobre o país se coadunavam com a temática do nacionalismo do período Vargas. E seus conceitos básicos eram mistura e integração. É justamente neste contexto que presenciamos a ascensão do futebol. Dos anos 30 aos 50, de fato, a popularização do futebol acelerou-se de modo notável, efeito da profissionalização2 , mas, sobretudo, graças à atuação de setores da intelectualidade e da imprensa, que ajudaram-no a se constituir num espetáculo de massa e num elemento da cultura popular. Nesse aspecto, a participação de Mário Rodrigues Filho foi central, pois foi ele quem inventou o jornalismo esportivo como gênero no Brasil e fomentou o surgimento de um público de massa para o futebol, através de sua atuação em vários jornais importantes do Rio de Janeiro (O Globo, O Mundo Esportivo e Jornal dos Sports). Por esse canal, Mario Filho promoveu continuamente eventos públicos em torno do futebol, participou de forma ativa do debate sobre o fim do amadorismo e, em suas crônicas esportivas, passou a descrever as partidas de futebol como verdadeiros épicos, onde estavam em jogo valores humanos mais altos e não apenas disputas esportivas (LEITE LOPES, 1994). Mario Filho foi um ardente defensor do profissionalismo, pois acreditava que este era “um meio para levar à emancipação dos negros, condição necessária para a constituição do futebol como esporte nacional”. Para ele, o profissionalismo não se tratava apenas de uma questão econômica, mas do estabelecimento de uma relação de identidade entre os jogadores e o público, unidos pela adesão a um mesmo projeto de emancipação social pelo esporte. Foi ele também o principal responsável pela construção do estádio do Maracanã, erguido no Rio de Janeiro especialmente para sediar a Copa do Mundo de 1950. De dimensões grandiosas, o Maracanã havia sido construído, segundo Mario Filho, “para exaltar o amor do brasileiro pelo futebol”. O estádio ganhou o nome do jornalista em 1966, ano de sua morte. Personagens 6 5 7 ( ( como Mario Filho, e no seu rastro, todo um setor da vida intelectual brasileira, sobretudo jornalistas e cronistas, acabaram por transformar o futebol num esporte intimamente próximo dos gostos e das expectativas do povo. Como observa Leite Lopes (1994), essa nova forma de comunicação com as classes populares através do futebol logo é aproveitada na linguagem do corporativismo do Estado Novo. As maiores intervenções públicas do presidente Vargas, dirigidas aos trabalhadores, aproveitando a popularidade adquirida pelo futebol, aconteceram no estádio de São Januário (de propriedade do clube Vasco da Gama e, até 1950, o maior estádio do Rio de Janeiro). Foi ali, por exemplo, que o governo anunciou a adoção do salário mínimo, em 1940. Ao mesmo tempo, intensificava-se a presença do Estado como regulador e promotor da atividade esportiva. Em 1942, os clubes de futebol são atrelados ao Governo Federal, como parte do programa centralizador e estatizante do Presidente Vargas. A Lei nº 3.199 de 14 de abril de 1941 criou o Conselho Nacional de Desportos (CND), com o objetivo de “orientar, fiscalizar e incentivar a prática de desportos no país”. A criação do CND revela que o futebol era tido como aspecto relevante aos olhos dos dirigentes da nação. Por outro lado, o CND era uma entidade governamental não identificada com os clubes (instituições de direito privado sem finalidade lucrativa), e sua missão era servir aos interesses políticos do governo. Até a Constituição de 1988 - que extinguiu o CND - a estrutura da organização do futebol no Brasil foi a seguinte: os clubes eram organizados em federações regionais; e as federações eram supervisionadas e submetidas às regras da Confederação Brasileira de Desportos (CBD e, após 1979, Confederação Brasileira de Futebol, CBF). Todas estas entidades eram executivas e o CND, a entidade normativa. Na prática, porém, o CND era também uma entidade executiva, tendo poder de intervenção nas federações e clubes sempre que julgasse necessário. No mesmo período, a atuação desses jornalistas e intelectuais faz surgir e começa a difundir a idéia de que existe um “estilo” próprio de jogar futebol no Brasil. E que esse estilo expressaria determinados traços do “caráter” ou do “espírito” brasileiro, sobretudo a idéia de harmonia, de um ajuste bem feito entre elementos europeus e africanos, brancos e negros (GORDON, 1996). Daí a idéia de que o futebol brasileiro se manifesta em campo como uma espécie de “dança” e que expressa características tais como malícia, arte, musicalidade, ginga e espontaneidade.3 O próprio Mario Filho escreve O negro no futebol brasileiro para mostrar como tais características são uma contribuição de negros e mestiços ao futebol. Nesta obra, o jornalista credita ao futebol o papel de integrar negros e mestiços na sociedade, funcionando como mecanismo de democratização das relações sociais. ! #$$# ++ /4 Assim é que o futebol brasileiro – tal qual a sociedade brasileira – começava a ser visto como um resultado positivo da mistura racial. Tal característica seria o principal vetor da integração e elemento novo, capaz de fazer o país “dar certo”. Mecanismo de integração e democratização racial, expressão de um “estilo” representado como um produto da mistura de raças (isto é, definidor de uma identidade), microcosmo da sociedade e da nação: o futebol torna-se tudo isso ao longo das décadas de 30 e 50. Metáfora poderosa, pois transcende os limites do campo acadêmico e intelectual (onde foi gerada), para se tornar uma ideologia amplamente difundida e absorvida pelo senso comum. Particularmente durante as Copas do Mundo (inicialmente com a derrota em 1950, mas depois com as seguidas vitórias de 58, 62, 70), foi possível enxergar com bastante clareza a eficácia desta metáfora e do amálgama que se construiu entre “identidade, Nação e futebol”. Transformado em universo metafórico da Nação (a pátria de chuteiras), o futebol brasileiro tinha, junto com a seleção, a tarefa de expor ao mundo a suposta grandiosidade do país: tratava-se não apenas de conquistar títulos, mas de buscar “um lugar entre as nações” (GORDON; VOGEL; 1996 e 1995, 1982).Quando o futebol brasileiro finalmente sagrou-se campeão do mundo, o país vivia um momento de otimismo e euforia, numa nova fase de crescimento econômico e industrialização. Foi um período de intensa revitalização cultural, em que as temáticas nacionalista e integracionista se faziam sentir em diversos níveis: desde a construção da nova capital federal pelo presidente Juscelino Kubitschek (Brasília, situada em meio ao Planalto Central, região ainda pouco povoada naquela época), até as manifestações artísticas como Cinema Novo, Bossa Nova e manifestações diversas da arte popular. As duas conquistas seguidas e irretocáveis dos brasileiros, construídas basicamente com o talento de jogadores negros (como Pelé) e mestiços (como Garrincha) representaram (ou seja, foram socialmente construídas e afirmadas discursivamente pelos brasileiros como sendo) a ressurreição e supremacia do futebol artístico (derrotado em 50), com ginga e samba, a vitória da arte sobre a força, da intuição e da espontaneidade sobre a razão, da magia sobre a tecnologia, enfim, a vitória do futebol e da nação que se harmonizaram através da mistura de suas diferenças. Portanto, a transformação do futebol em “esporte nacional” foi produto de um processo histórico realizado por agentes do universo cultural, político e esportivo, tendo como base uma forte presença do Estado e das idéias nacionalistas. Nesse período, a idéia de “modernizar” o futebol não significava apenas ultrapassar o elitismo amadorista que vigorou nas duas primeiras décadas do século, mas, sobretudo, associar o futebol a domínios mais inclusivos da realidade social brasileira: o Estado Nacional e o povo. 6 5 7 ( ( A “crise” do futebol brasileiro e a dramatização na mídia Entre os anos 60 e 70, o futebol brasileiro encontrava-se no apogeu. A seleção conquistara as Copas de 58, 62 e 70, e o Santos - com Pelé - venceu consecutivamente a Taça Libertadores da América e o Mundial Interclubes em 1962 e 1963. O público afluía aos estádios para ver os grandes espetáculos. Futebol e torcedores viviam uma espécie de “lua de mel”. A final do campeonato carioca de 1963, por exemplo, atraiu 177.020 pagantes para o Maracanã, recorde oficial de público em partidas entre clubes. Em novembro de 1969, Pelé marcou o milésimo gol, consolidando seu lugar como o maior jogador de futebol de todos os tempos. A supremacia brasileira no futebol parecia inquestionável. Em 1967, um campeonato, envolvendo os cinco maiores estados do Brasil, substituiu o tradicional torneio Rio/São Paulo, disputado desde 1950. Em 1969, foi criada a Loteria Esportiva, a fim de gerar recursos necessários para alguns programas governamentais. Em 1971, dentro do novo projeto de integração nacional do governo que se instaurara em 1964, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) organizou um campeonato com clubes da maioria dos estados do país, hoje conhecido como Campeonato Brasileiro. No início dos anos 70, foram construídos vários estádios com capacidade para mais de 70 mil (alguns para mais de 100 mil), de acordo com dados da CBF. É o caso do Morumbi, em São Paulo, o Rei Pelé, em Maceió e o Castelão, no Ceará. Nessa época, o país, sob o regime militar, atravessava um período de otimismo econômico que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”. A propaganda oficial, estimulando o ufanismo, lançava lemas e palavras de ordem, tais como “Brasil, País do Futuro” e “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. O futebol, pela grande popularidade, parecia ser um meio eficaz para o governo transmitir suas mensagens. A principal delas: reforçar a idéia de um país integrado através do futebol. Uma marchinha veiculada em todos os meios de comunicação, nos meses da copa do mundo, dizia: “noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração/ De repente é aquela corrente pra frente/ parece que todo o Brasil deu a mão/ Todos unidos na mesma emoção, tudo é um só coração/ Todos juntos vamos, pra frente Brasil/ salve a seleção.” No entanto, a partir de meados dos anos 70 (após a derrota na Copa de 1974), a imagem do futebol brasileiro começa a apresentar alguns sinais de desgaste4 . Do ponto de vista da estrutura organizacional, o germe da crise que estava para emergir já era aparente, por exemplo, na falta de autonomia dos clubes, na política de alianças entre as federações e as pequenas ligas e num calendário incapaz de acomodar dois campeonatos longos: os regionais e o Brasileiro. Enquanto isso, na Europa, uma reorganização do futebol avançava, conduzindo a gestão do esporte em moldes mais empresariais. ! #$$# ++ /4 . Em 1975, a situação agravou-se com a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei nº 6.251 que, entre outras medidas, institucionalizava o voto unitário nas federações e confederações. Aparentemente moderno e democrático, esse sistema se transformou em um poderoso instrumento de barganha política, dando às ligas do interior o poder de controlar as federações. Com o advento do voto unitário, as federações e a CBD organizaram campeonatos em que participavam diversos clubes pequenos ou sem expressão no cenário futebolístico do país. Esses campeonatos longos - e com grande quantidade de jogos de pouco interesse - resultaram em fracassos financeiros para os grandes clubes. Em 1978, por exemplo, a CBD organizou um Campeonato Brasileiro com 74 clubes de todos os estados e, em 1979, com 94 clubes. A média de público caiu dramaticamente (10.615 em 1978 e 9.137 em 1979, a menor da história). Por volta desse período, o jornal O Globo publicou uma série de artigos e debates com jornalistas, dirigentes e técnicos de futebol para tratar de “A Decadência do Futebol Brasileiro” (O Globo, de 17/09/78 a 22/09/78). Os títulos destes artigos são reveladores: a) “Os torcedores, desencantados, abandonam o estádio”; b) “Jogos ruins, vaias, esta é a rotina”; c) “Em busca do lucro, como uma empresa”; d) “Uma reforma estrutural: a única solução”; e) “Politicagem: aqui está o principal problema do futebol segundo especialistas”. Analisando-os, é possível perceber uma tensão entre dois discursos, ou duas éticas distintas: uma “tradicional”, baseada em troca de favores, relações interpessoais e amadorismo na administração, e uma outra “moderna”, reivindicando profissionalização dos dirigentes, leis impessoais e uma visão empresarial. Alguns anos antes, a imprensa já refletia essa tensão em reportagens cujos títulos também eram expressivos: “Futebol S.A.: a falência de uma empresa” (Jornal do Brasil, 10/07/74); “Por todo o país, um futebol em falência” (Estado de São Paulo, 28/07/74); “Um futebol que já foi tricampeão é hoje um futebol em crise” (Estado de São Paulo, 25/08/74); “A crise do futebol” (O Globo, 16/02/75); “Fora do campo, um futebol que é rei só na incompetência” (Visão, 04/08/75); “São Paulo: da associação com a Coca-Cola pode surgir até um supertime” (Estado de São Paulo, 24/06/76); “A estrutura de um futebol em decadência” (Estado de São Paulo, 30/08/ 76); “Havelange prevê o fim do futebol sem o apoio da publicidade” (Jornal do Brasil, 10/11/76) e “Futebol do Brasil S.A.” (Veja, 10/09/78). Nestes artigos, a reivindicação para a modernização administrativa já ganhava expressão e as referências ao futebol como empresa eram sintomas do que estava ocorrendo na Europa. Mas eles também expressavam uma preocupação com o aumento da violência nos estádios. A crescente urbanização e o crescimento populacional nas cidades, promovidos nas décadas anteriores, tiveram o efeito de alterar as formas de 6 5 7 ( ( / sociabilidade e a geopolítica dos centros urbanos. Nos anos 70, a maioria das grandes cidades apresentava um anel urbano periférico, povoado majoritariamente pelas classes economicamente desfavorecidas, facilitando o surgimento de clusters de marginalidade e criminalidade. No mesmo período, foram surgindo as chamadas “torcidas organizadas”, organizações de torcedores oriundos de uma mesma região ou bairro da cidade que visavam expressar distintivamente um determinado estilo de vida e de comportamento comum. O aumento da violência tem sido relacionado ao aparecimento e difusão dessas torcidas (TOLEDO; MURAD; 1994, 1996). A era de ouro do futebol parecia ter chegado ao fim, e o meio esportivo já esboçava diagnósticos da crise. Ela foi descrita como resultado de uma série de fatores interrelacionados que, se não combatidos, conduziriam ao colapso do futebol brasileiro. Os analistas destacavam problemas de ordens diversas, mas muitas vezes sobrepostas, que podemos esquematizar, brevemente. De ordem econômica: fracasso financeiro dos clubes, campeonatos deficitários, empobrecimento da população: tudo isso relacionado, de modo geral, ao fim do período do “milagre” econômico, ao adensamento da recessão no final dos anos 70, à inflação, enfim, ao que os economistas passaram a denominar de “a década perdida da economia brasileira”. De ordem social: aumento da violência e da insegurança nos estádios. De ordem político-administrativa: a interferência do Estado, através de uma legislação esportiva que não dava autonomia aos clubes e federações; os interesses pessoais e políticos dos diretores das federações, da CBF e de alguns clubes; o paradoxo de haver dirigentes amadores administrando uma atividade cada vez mais profissional e comercial. De ordem técnica: a falta de grandes craques das décadas passadas (como Pelé, Garrincha, etc.), associada ao êxodo dos melhores jogadores em atividade para o exterior, tendo em vista o empobrecimento dos clubes. Tudo isso se refletia no progressivo afastamento dos torcedores dos estádios. Os problemas se sucediam e, como resposta à crise e na tentativa de superá-la, foram surgindo mudanças na forma de apresentação do espetáculo. Em 1977, por exemplo, as placas de publicidade foram introduzidas ao redor dos campos. O dinheiro gerado era dividido entre os estádios e as federações. O futebol entrou também na era da televisão, com a transmissão de jogos em videoteipe. No entanto, os clubes não recebiam dinheiro pelas transmissões. Em 1983, a publicidade nos uniformes foi vista pela primeira vez. Esta foi uma tentativa mais radical de solucionar o déficit financeiro dos clubes – que, a cada ano, tornava-se mais expressivo. A mudança, inicialmente, causou reação nos torcedores, já que mexia num aspecto tido como “sagrado” do espetáculo (atualmente é encarada com naturalidade). Mas como a queda de público aumentava e os clubes arrecadavam muito pouco com as bilheterias, ! #$$# ++ /4 0 a venda de jogadores para o exterior tornou-se a saída mais imediata para resolver seus problemas financeiros. Após 1982, iniciou-se um êxodo maciço de jogadores para a Europa, o que contribuiu para desencantar ainda mais os torcedores. A partir de 1987, iniciaram-se as transmissões ao vivo, gerando mais uma polêmica sobre o esvaziamento do público nos estádios e sobre as compensações financeiras dos contratos assinados pelos clubes com a televisão.5 Com o fim do regime militar e o começo da redemocratização em 1985, o país começou a repudiar algumas das idéias que definiram o período anterior, tais como “planejamento”, “centralização”, “vontade nacional” (LESSA, 2000), como se a experiência desenvolvimentista e nacionalista fracassada se devesse antes aos seus fins do que a seus meios. Mas o país acabava de sair de uma ditadura, traumatizado pelo desmesurado poder estatal, ansiando por liberdade. Daí que, na falta de um projeto unificado das forças democráticas, a estratégia política possível foi a de rejeitar todo o projeto anterior. Nesse sentido, para alguns especialistas, era preciso aplicar esse mesmo raciocínio anti-estatal ao domínio do esporte, reformulando a legislação esportiva que teve suas origens na era Vargas e foi reforçada durante o regime militar (1964-1985). A estrutura do futebol, regulada pela legislação esportiva de 1975, permanecia inalterada desde então e era considerada por alguns “um reduto de reacionários”.6 Note-se que até 1990 foram elaboradas duas leis gerais regulando a organização dos esportes no país: o Decreto-Lei nº 3.199, de 1941, e a Lei nº 6.251, de 1975, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 80.288, de 1977. Ambas foram estabelecidas durante regimes autoritários, centralizadores, o que explica a forte interferência do Estado na organização de clubes, federações e CBF; o impedimento à profissionalização dos dirigentes; e nenhuma autonomia para que os clubes organizassem os campeonatos. A pressão para a transformação da legislação esportiva foi ganhando maior espaço na mídia e na sociedade, sendo vista como um passo imprescindível para o sucesso administrativo do futebol brasileiro. Em 1990, o Presidente da República convidou o ex-jogador Zico para assumir a Secretaria Nacional de Esportes - órgão recém-criado pelo Presidente, com status de ministério. O trabalho mais conhecido de Zico, como secretário, foi a elaboração de um projeto de lei que visava à transformação radical da legislação esportiva, não só concedendo autonomia para clubes e federações, como também permitindo a profissionalização dos dirigentes e extinguindo a Lei do Passe. Após várias modificações devido ao lobby de dirigentes e políticos, o “Projeto Zico” - como ficou conhecida a lei - foi finalmente aprovado no Congresso Nacional e normatizado na Lei nº 8.672, sancionada pelo Presidente da República em 6 de julho de 1993. Apesar das emendas, a “Lei Zico” alterou 6 5 7 ( ( 1 sensivelmente a forma de organização dos clubes.7 Atualmente existem condições legais para os clubes se estruturarem de forma profissional. Ao contrário do período que analisamos anteriormente, as mudanças propostas para solucionar os males do futebol buscam reduzir cada vez mais a presença do Estado e facilitar a transformação dos clubes (ou de seus departamentos de futebol) em empresas com finalidades lucrativas. Hoje, alguns agentes do universo esportivo, ao contrário das décadas de 30 a 50, acreditam que o futebol não é uma questão de Estado, mas de mercado. Porém, as mudanças não trouxeram os resultados almejados. Pelo contrário, as relações comerciais entre os clubes, a CBF e as empresas patrocinadoras, que seriam solução, tornaram-se elas próprias parte da crise e, hoje, estão no centro das investigações do Congresso sobre corrupção e má gestão no futebol. Mesmo após a conquista da Copa de 94 e de outros resultados internacionais importantes durante os anos 90, os problemas envolvendo o futebol brasileiro permanecem, mantendo a palavra “crise” na pauta da imprensa esportiva. É interessante notar que um dos principais parâmetros de definição da crise - a queda de público - é um fenômeno menos constante (e mais complexo) do que a imprensa e os cronistas esportivos sempre fizeram crer (HELAL, 1994, 1997). A queda de público do principal campeonato do país, longe de ser homogênea, apresenta flutuações significativas, que indicam tratar-se de um fenômeno conjuntural. Além disso, nos parece problemático mensurar o interesse (ou desinteresse) dos torcedores avaliando as médias de público, uma vez que o número de torcedores que freqüentam os estádios é sempre menor do que o de torcedores que acompanham os campeonatos apenas através dos meios de comunicação. Os índices de audiência das televisões demonstram que o futebol atrai mais a atenção dos telespectadores do que a grande maioria de programas transmitidos. Portanto, se a queda de público não é tão dramática e constante quanto pensávamos; se o futebol brasileiro conquistou importantes títulos internacionais nos anos 90, incluindo Libertadores de América, Mundiais Interclubes e Copa do Mundo (chegando a duas finais consecutivas, fato que não ocorria desde 1962); se vem revelando ótimos jogadores, reconhecidos internacionalmente (alguns alcançando o troféu de melhor do mundo pela FIFA), como Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho; se os clubes e a CBF passaram a fazer contratos de patrocínio com empresas nacionais e estrangeiras e se continua-se a falar de crise, isso parece indicar que ela tem uma natureza mais problemática do que pensávamos, escapando a definições simples. Devemos chegar à conclusão de que a crise é mais uma representação social do que um fenômeno que se possa delimitar concretamente. ! #$$# ++ /4 O futebol brasileiro no século XXI Não queremos dizer com isso que não haja problemas com o futebol brasileiro, nem que o descrédito a que chegaram as instituições e os dirigentes seja apenas ilusão de ótica. O que observamos é que tais fatos sempre estiveram, em uma medida ou outra, presentes na história do futebol brasileiro e, nem por isso e nem sempre, enfatizou-se a crise. É preciso refletir sobre ela, vendo-a como uma representação ou um discurso que aparece em certos momentos muito particulares, quando está em curso a construção (ou reconstrução) de um espaço naturalizado para o futebol na nossa sociedade. Em outras palavras, a crise manifesta-se em certos momentos chave no processo de construção social do futebol. Atualmente, vivemos um desses momentos. Há uma nova formulação em curso que acompanha as mudanças por que passa a sociedade. Na maioria das vezes, tal formulação aparece sob o rótulo não muito esclarecedor da “modernização” (adoção de uma ética profissional e de mercado), que os especialistas e os agentes do universo do futebol apresentam como solução para a crise. Por outro lado, essa ética não pode deixar de levar em consideração os aspectos mais românticos, amadores e passionais que permeiam este universo. A tensão entre a persistência de uma visão tradicional (romântica) e a tendência à modernização administrativa tornou-se um elemento importante para a compreensão do futebol no Brasil. Em geral, espera-se que a conciliação entre esses dois aspectos conduza o futebol brasileiro, outra vez, a uma fase dourada. No entanto, a própria idéia de “modernização” precisa ser problematizada, pois ela nem sempre significou a mesma coisa. Se, no início dos anos 30, as forças “modernizantes” defendiam a profissionalização dos jogadores como solução para libertar o futebol de uma “crise”, hoje a tendência é no sentido da profissionalização dos dirigentes e na adoção do modelo denominado futebol-empresa. Esses dois movimentos são muitas vezes considerados como etapas de um único processo de modernização do esporte. Porém, queremos notar que se trata de processos basicamente diferentes; em certo sentido, antagônicos em seus propósitos. A modernização pela profissionalização dos jogadores, que defendia Mario Filho, não prescindia da interferência do Estado como promotor do esporte e visava enfatizar aspectos “tradicionais”, criando contextos de “sacralização” dos times e dos ícones relacionados (camisas, bandeiras, narrativas quase míticas dos jogos). Hoje, o sentido de modernização contido na idéia de profissionalização dos dirigentes é distinto. Trata-se de alijar o Estado das decisões que concernem ao futebol, entregando tal incumbência ao capital privado (futebolempresa). Ao mesmo tempo, dessacralizam-se vários elementos (o estádio, a camisa, os próprios clubes, cujos nomes começam a se fundir com o de empresas, tal como 6 5 7 ( ( o Palmeiras-Parmalat, transformando-se em suportes mercantis), submetendo-os à lógica do mercado e do lucro, como se o futebol fosse mais um produto ou uma commodity, da qual se incumbirá plena e satisfatoriamente o marketing. A modernidade das décadas 30-50 significava uma expansão do Estado sobre o campo do futebol. A modernidade das décadas 80-90 significa uma retração do Estado e uma expansão do mercado sobre esse setor. Mas a questão é mais complexa: para solucionar a “crise” da década de 30 e abrir o futebol para seu período “de ouro”, a simples adoção do profissionalismo talvez não tivesse sido suficiente. Para transformar o futebol no esporte nacional foi necessário todo um processo, realizado por agentes intencionalmente orientados, que tinham uma determinada concepção de qual deveria ser o lugar do futebol em nossa sociedade. Esse processo pode ser caracterizado como uma aproximação e associação do futebol com figuras mais inclusivas e totalizantes da realidade social: o país, a Nação, o povo. O projeto atual para o futebol não fala mais desse vínculo, mas, ao mesmo tempo, se ressente da sua perda. Eis o grande paradoxo da chamada “crise”. De fato, tem-se a impressão de que, muitas vezes, os agentes do universo futebolístico não conseguem ver claramente que o “país do futebol” não é uma realidade natural, mas uma construção social que dependeu de uma conexão ad hoc do futebol com instâncias mais totalizantes da vida social. À medida que se coloca a ênfase do futebol como um produto a ser consumido num mercado de entretenimento cada vez mais pulverizado e diversificado, sem um projeto que o articule a tais instâncias mais inclusivas, o que se consegue é esgarçar cada vez mais o vínculo estabelecido antes. A metáfora perde a força. E ficamos com a sensação de que algo falta. Talvez aí esteja localizada, verdadeiramente, a crise. Por certo, esses fatos refletem as mudanças por que passa o país na chamada era da globalização.8 A dificuldade em manter os nexos do futebol com a identidade nacional não é só um problema de falta de perspectiva histórica dos agentes. Na verdade, a própria idéia desses domínios totalizantes é o que se enfraquece na globalização. É curioso que, no mesmo período em que detectamos o início da crise, assistimos também ao início do declínio da idéia de Estado e Nação como definidores das identidades coletivas. Muitos cientistas políticos anunciam que o país “chegou ao fim da Era Vargas”. O que querem dizer com isso? Que estamos num momento de redução do poder do Estado, de esvaziamento da idéia de Nação e do projeto nacionalista e corporativista. A idéia de globalização traz em si a negação dos Estados-Nacionais e a fragmentação das identidades. Não se enfatiza mais a pertinência das pessoas a uma Nação, mas a grupos étnicos, de gênero e, sobretudo, a grupos que se definem basicamente pelo consumo. Ao mesmo tempo, observamos fragmentação de produtos, ! #$$# ++ /4 serviços e bens de consumo, que acompanham e visam atender essa pulverização das identidades em setores de consumo. A transformação do futebol num produto ratifica sua dissociação com domínios mais totalizantes e coloca-o num meio em que passa a fazer parte de uma miríade de produtos de entretenimento (e de consumo), no meio de tantos outros (com a difusão das redes de televisão, o aumento da produção de mídia) disponíveis no mercado. No entanto, grande parte dos agentes do mundo do futebol crê que essa transformação será capaz justamente de reconduzir o futebol a seu posto de esporte nacional. Eis o paradoxo da crise. Se o futebol esteve longamente associado à integração e ao nacionalismo (enfim, à identidade brasileira), o que acontece quando na contemporaneidade, a ênfase recai sobre a diferença, a pulverização das identidades, a fragmentação? Se o futebol foi basicamente um mecanismo integrador: o que acontece quando não há mais o que integrar? Qual será o futuro do futebol no Brasil? Sucumbirá na pós-modernidade, deixando patente que pertenceu, de fato, à modernidade e, em certa medida, ajudou a construir essa modernidade no Brasil? Ou sobreviverá, anunciando que essa pósmodernidade jamais poderá ser plena, pois necessitamos viver sob o signo da nacionalidade, da identidade cultural, da integração do país em um só povo, uma só nação, “como se todo o Brasil desse a mão em um só coração”? De qualquer modo, compreender as mudanças em curso no universo do futebol do século XXI significa lançar os olhos sobre o que está sendo e o que poderá vir a ser a sociedade brasileira, bem como o Brasil enquanto Nação, no contexto de um mundo que se pretende globalizado.

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